Um doce convite para ver Bressane levou-me ao cinema. Eu ainda não me decidira a assistir Matou a Família e Foi ao Cinema, mas não resisti ao chamado afetuoso.
Antes de mais nada, é possível dizer que foi até bastante fácil. Além de já estar em plena atividade como frequentador assíduo das salas de cinema, uma amiga me fez o convite, assustada com o título.
Lhe parecia um filme de terror, mas fazia parte das conversas nas festinhas onde se dançava twist. E ela disse que teria que ir acompanhada para não sentir medo.
Você resistiria, caro leitor? Imagine então eu, um apaixonado por cinema e sabedor de que os filmes com títulos assustadores são os melhores para ir docemente acompanhado.
Afinal de contas, muito jovem ainda, eu não me sentia intimidado ao dar razão às fofocas da turma do barulho.
E a moda, além da dança americana que se curtia na época, era comentar que as garotas, quando sentiam medo no cinema, costumavam se abraçar a quem estivesse com elas (risos).
Um panorama diferente do mundo
Excetuando o período do fechamento do regime, que nos assustava, os fatos, naquela época, eram menos tenebrosos do que a realidade com que convivemos hoje, no mundo todo.
Ou pelo menos assim parecia, a não ser que a responsável, hoje, seja a facilidade de acesso ao noticiário, que muitas vezes informa pretensamente, mas acaba desinformando mais.
Na cinematografia de Bressane, o título que chamava mais a atenção era, evidentemente, o já mencionado Matou a Família e Foi ao Cinema (1969).
Passados tantos anos, temos hoje também produções que soam mais como quase documentários. E que retratam famílias que se destroem.
Mas nada que se compare, em estilo de narrativa, à obra que se tornou emblemática do chamado Cinema Marginal, como esse filme de Júlio Bressane.
Matou a Família e Foi ao Cinema figura na lista da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), divulgada em 2015, entre os 100 melhores filmes do cinema brasileiro.
Alienação social sempre presente em um filme reflexivo
Não se pode duvidar de que Bressane se mostrou visionário naqueles tempos, que também tinham momentos bastante sombrios.
Com uma narrativa fragmentada e carregada de ironia, o filme explora temas como violência, moralidade e alienação social.
Embora tenha provocado a divisão da crítica na época, é hoje considerado um clássico cult, representando a irreverência e a liberdade criativa que caracterizavam aquele movimento cinematográfico.
Doce convite para ver Bressane ampliou minha visão de cinema
Júlio Bressane é um dos cineastas mais originais e prolíficos do cinema brasileiro.
É um cineasta conhecido por sua abordagem experimental, suas temáticas filosóficas e literárias, e sua capacidade de subverter convenções narrativas.
Nascido em 13 de fevereiro de 1946, no Rio de Janeiro, ele iniciou sua carreira no cinema nos anos 1960.
Integrava uma geração de realizadores que buscava novas formas de expressão no contexto do Cinema Novo e, posteriormente, do chamado Cinema Marginal.
Sua obra, marcada por uma visão autoral e vanguardista, desafiou normas estéticas e institucionais, consolidando-o como uma figura ímpar na história do cinema.
Produção não cessa em tempos de exílio
Nos anos 1970, exilado devido à repressão da ditadura militar brasileira, Bressane continuou a desenvolver sua linguagem cinematográfica em produções de baixo orçamento e com uma abordagem radicalmente autoral.
Filmes como O Anjo Nasceu (1969) e Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971) retratam a violência e a marginalidade com um estilo cru e, ao mesmo tempo, poético, desafiando tanto o público quanto os padrões narrativos convencionais.
Ao longo de sua carreira, Bressane demonstrou um profundo interesse por temas culturais, históricos e literários.
Ele dialogava, frequentemente, com figuras e obras da tradição brasileira e mundial, ampliando seu universo criativo.
O cinema em nova perspectica
Filmes como São Jerônimo (1999) e Cleópatra (2007) revelam seu talento para recriar contextos históricos com uma perspectiva singular.
Para tanto, combinava simbolismo, experimentalismo visual e densidade intelectual.
Em Cleópatra, por exemplo, Bressane reinterpreta a história da rainha egípcia com uma abordagem estilística que mescla elementos teatrais e cinematográficos.
Ao seu estilo, desafiava as expectativas tradicionais associadas a filmes de época.
Apesar de dividir a crítica, o filme foi reconhecido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Era novembro de 2007. E Cleópatra, que foi apresentado no Festival de Cinema de Veneza (Itália), venceu como Melhor Filme no Festival realizado em Brasília.
Música e poesia no cinema de Bressane
Outro aspecto central na obra de Bressane é sua relação com a poesia e a música, honrando a denominação do cinema como Sétima Arte.
Filmes como Dias de Nietzsche em Turim (2001) e Educação Sentimental (2013) refletem sua afinidade com a linguagem poética, tanto na estrutura narrativa quanto na construção visual e sonora.
Dias de Nietzsche em Turim é uma meditação filosófica sobre os últimos anos de lucidez do pensador alemão Friedrich Nietzsche.
O filme ganha realce com imagens de grande beleza plástica e por refletir uma atmosfera contemplativa.
Já Educação Sentimental, inspirado na obra de Gustave Flaubert, é um estudo sensível sobre as nuances das relações humanas, com uma narrativa que privilegia a subjetividade e o lirismo.
As inevitáveis divergências
Apesar de seu reconhecimento no meio acadêmico e entre cinéfilos, Bressane enfrentou, muitas vezes, resistência do grande público e da crítica mais convencional.
Sua abordagem passa a ser frequentemente descrita como hermética ou inacessível, uma caracterização que ele próprio, por sinal, não rejeita completamente.
Ao longo dos anos, essa posição de outsider permitiu que ele mantivesse uma liberdade criativa incomum, o que resultou em uma filmografia que desafia categorizações fáceis.
Subversão de valores com parcerias relevantes
Bressane também é conhecido por sua colaboração com outros cineastas e artistas importantes do Brasil.
Ao lado de Rogério Sganzerla e Helena Ignez, entre outros, ele contribuiu para a consolidação do Cinema Marginal como um movimento que privilegiava a experimentação e a subversão dos padrões de produção e distribuição.
Essa parceria também foi essencial para a formação de uma nova geração de realizadores que enxergavam o cinema como uma forma de arte libertária e transformadora.
Doce convite para ver o premiado Bressane
Ao longo de sua trajetória, Bressane recebeu diversos prêmios e homenagens, tanto no Brasil quanto no exterior.
Sua contribuição para o cinema foi reconhecida em festivais como o de Veneza e o de Locarno (Suiça), considerado um dos antigos festivais de cinema mais importantes do mundo.
Além disso, mereceu retrospectivas dedicadas à sua obra em instituições de prestígio, como a Cinemateca Francesa.
Esses reconhecimentos são um testemunho de sua relevância no cenário internacional e de seu impacto duradouro no campo da arte cinematográfica.
Júlio Bressane permanece como uma figura essencial para compreender as transformações do cinema brasileiro nas últimas décadas.
Sua obra, marcada pela busca incessante de novas formas de expressão, é um convite à reflexão sobre os limites e as possibilidades da linguagem cinematográfica.
Um veterano em atividade
Aos 78 anos de idade na data em que escrevemos este artigo, pode-se dizer que, mesmo enfrentando dificuldades de produção e distribuição, Júlio Bressane continua a criar filmes que desafiam, provocam e encantam.
Em 2023, ele reuniu 60 dos seus filmes em uma obra de 70 horas, na qual inclui também cenas inéditas.
Com isso, reafirma seu compromisso com um cinema que é, acima de tudo, uma forma de poesia visual e intelectual.
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