Se a pessoa não tem um bom discurso para defender uma boa causa, a melhor opção é ficar calada. Essa evidência é que torna Jantar com Beatriz indigesto.
A circunstância se torna perceptível no filme, que é repleto de boas intenções. E que teve, na direção de Miguel Arteta, bons recursos cinematográficos, com a intenção de substituir as palavras. Mas esses recursos não foram suficientes.
Beatriz (Salma Hayek) é uma dedicada profissional de terapias alternativas que ama os animais, com os quais convive dentro de casa.
Entre esses animais, além de cachorros, há cabritos, um dos quais foi morto por um vizinho que a própria Beatriz define como maluco, excessivamente nervoso e sempre bêbado.
É o vizinho que vive a importuná-la exatamente pelo fato de ela ter amor pelos animais e protegê-los com imenso carinho e dedicação.
Beatriz fica abatida diante da realidade que a atormenta
Após sair da clínica onde trabalha como massagista e terapeuta holística, a imigrante Beatriz se dirige à residência luxuosa da cliente rica, Kathy, em Los Angeles (EUA).
Durante a massagem que faz em Kathy, ela demonstra seu abatimento com a morte do cabrito pelo vizinho, respondendo a uma pergunta da própria cliente sobre como ela estava.
Estabelece-se aí a identificação do vínculo de suposta amizade entre a cliente riquíssima e sua massagista, uma modesta imigrante mexicana que viu sua comunidade destruída pela especulação imobiliária.
Após finalizar o atendimento, Beatriz vai até o seu velho carro, insiste em girar a chave na ignição, mas o carro não pega, apesar das várias tentativas.
Ela então relata o ocorrido a Kathy. E diz que terá que esperar que chegue um amigo que sempre a socorre nessas ocasiões. Mas que está ocupado e terá que aguardar que ele se desloque até poder ajudá-la com o conserto do carro.
Após todo o infortúnio e a previsível impossibilidade de o amigo de Beatriz chegar ao local, Kathy a convida para o jantar, que já está marcado com um grupo de amigos, para festejar um novo empreendimento imobiliário.
Jantar com Beatriz fica indigesto com a presença de Doug Strutt
O jantar com Beatriz se torna indigesto com a entrada em cena de Doug Strutt, um inescrupuloso empresário do setor imobiliário, que chega a se divertir com a expulsão de antigos moradores e o sacrifício de pássaros para concretizar seu novo empreendimento.
Como se isso não bastasse para provocar a indignação por parte de Beatriz, Doug Strutt ainda relata, com incontido prazer, que um de seus passatempos preferidos é ir à África para caçar animais.
Ele chega a exibir, entre todos os convidados que participam do jantar, a foto, em seu celular, de um dos animais que abateu a tiros nas selvas africanas.
Quando o celular chega às mãos de Beatriz, ela não consegue conter sua indignação diante da foto do animal morto, e o jantar diante da figura repulsiva do bilionário se torna indigesto.
Beatriz fica diminuída na presença das burguesas
Uma das claras intenções do filme é a de mostrar as diferenças e os conflitos de classes, com a modesta Beatriz convivendo com ricaças fúteis e superficiais.
Todas estão ricamente trajadas, enquanto Beatriz se esforça, colocando a blusa para dentro da calça, para ficar com melhor aparência, em sua simples vestimenta para o trabalho diário.
Um dos momentos em que o diretor Miguel Arteta se utiliza de recursos visuais no enquadramento das câmeras, para mostrar os contrastes, é quando todas as mulheres estão conversando.
As madames luxuosas em seus trajes e de saltos altos ficam sempre visíveis num plano muito acima de Beatriz, que parece muito pequena na presença das burguesas.
Estas, por sua vez, frequentemente ignoram a presença de Beatriz, conversando entre elas, como se a imprevisível convidada da dona da casa não existisse.
Jantar com Beatriz causa constrangimento entre os convidados
Mas não é apenas a figura repulsiva de Doug que torna o jantar indigesto.
A essa altura, e diante das expressões de irritação e de indignação de Beatriz frente a um empresário disposto a destruir a natureza e a expulsar moradores sem recursos financeiros, para construir seu império imobiliário, cria-se a expectativa de uma verbalização mais contundente por parte de quem se sente tão afetada.
Ao contrário disso, Beatriz manifesta essa sua indignação por rompantes físicos e por palavras superficiais que, nem de longe, representam o discurso de pessoas engajadas na luta que ela decidiu assumir.
Nem mesmo quando Doug tenta justificar suas atitudes condenáveis, argumentando que “as pessoas estão morrendo” e que, portanto, “é preciso aproveitar a vida”, Beatriz teve a capacidade de verbalizar a diferença fundamental entre a vida se esvair naturalmente e a morte ocorrer por assassinato.
Recorreu a verbalizações reduzidas em extensão e em conteúdo, levando o filme Jantar com Beatriz a indigesto, diante do contraste com a significação da luta a que ela se propôs em defesa dos animais, da natureza e da vida em seu mais amplo significado.
Algumas supostas amizades vêm à tona também. Depois da insatisfação manifestada por Beatriz, que provocou um ambiente de constrangimento entre os convidados, Kathy acaba oferecendo dinheiro a quem tanto elogiara como exemplo de ser humano, numa atitude de humilhação.
É como se quisesse ver-se livre da massagista. E isso depois de o marido da antiga cliente já ter se encarregado de, literalmente, expulsar Beatriz de casa, pagando um guincho para ela ir embora imediatamente com seu carro enguiçado.
O próprio marido de Kathy, ao repreender duramente Beatriz, deixa evidente a frivolidade de sua suposta amizade pelo empresário, que por sinal já havia escapado da justiça por antigas acusações.
Ele admite a origem do seu suposto apreço pelo bilionário Doug, dizendo que vieram dele os recursos que tornaram possível a aquisição de sua mansão luxuosa.
Isso, depois de, por várias vezes, defender tudo o que dizia o desprezível empresário destruidor de sonhos, do ambiente e da natureza, numa autêntica postura de puxa-saco do patrão.
A intenção da trama em expor frivolidades, falsidades e a impunidade de criminosos foi boa, mas o resultado deixou muito a desejar devido a essa visível incapacidade de Beatriz de expressar, com a devida contundência, a sua indignação.
A mulher do empresário repulsivo solta alfinetadas
Em algumas ocasiões, a própria esposa do bilionário acabou sendo mais certeira, ao disparar seguidas alfinetadas contra o comportamento do marido, que, por sua vez, rebatia com indisfarçável deboche.
Jantar com Beatriz é indigesto diante da importância de temas que poderiam ser melhor aproveitados em uma abordagem crítica mais contundente.
Salva-o a maestria do diretor em transpor essa abordagem para cenas sutilmente carregadas de significado.
Entre elas estão o simbólico banho purificador de Beatriz após presenciar tanta sujeira e o momento em que a burguesia se diverte soltando balões, uma brincadeira que têm sido apontada como causadora de riscos reais de destruição de florestas por incêndios, exatamente em solo norte-americano.
Desde que a perspicácia dos espectadores se aguce, é nessas cenas que o filme pode se mostrar mais eficaz nas críticas às situações reais que abalam valores humanos tão agredidos por indivíduos desprezíveis, representados pela figura repulsiva de Doug Strutt.
Só que Beatriz é a figura central, que deu título ao filme, e da qual se esperava um discurso mais contundente, em vez de gestos bruscos que levaram os comensais a acabarem por encará-la como uma simples louca sem estribeiras.
Jantar com Beatriz (Beatriz at Dinner)
Roteiro: Mike White
Direção: Miguel Arteta
Produção: EUA e Canadá (2017)
Em exibição na Star Plus
No elenco:
Salma Hayek: Beatriz
John Lithgow: Doug Strutt
Connie Britton: Cathy
Jay Duplass: Alex
Amy Landecker: Jeana
Chloë Sevigny: Shannon
John Early: Evan
David Warshofsky: Grant
Sean O’Bryan: Security Guard
Amelia Borella: Heidi
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