O fato de muitos enxergarem humor e comicidade no filme Vingança a Sangue Frio (só violência) é um sintoma do tempo em que vivemos, em que cenários cruéis estão cada vez mais banalizados.
A Netflix, uma das plataformas que exibem o filme, o descreve em poucas palavras: Violência extrema e drogas.
Ou seja, não há indícios de humor ou comicidade nessa apresentação da plataforma de streaming..
Na verdade, temos aqui mais uma nada disfarçável versão da conhecida pregação da chamada justiça com as próprias mãos.
Um homem aparentemente pacato, descrente da eficácia dos sistemas policiais e do poder judiciário, empreende uma jornada para – por iniciativa própria – buscar essa pretensa justiça, a sangue frio, com as próprias mãos.
Até então, ele se mostra um pacato condutor de um veículo usado para remover a neve que obstrui as estradas.
Nas cenas iniciais, ele improvisa um discurso por ter sido eleito cidadão do ano de uma pequena cidade do Colorado (EUA). A partir daí, é surpreendido pelo assassinato do seu filho, Kyle, morte classificada pelas autoridades como acidental, por overdose de cocaína.
Convicto de que o filho não é um viciado, e apesar da dúvida da esposa, Grace, ele se convence de que o jovem foi vítima de assassinato. E dá início à sua busca incessante por vingança.
Refilmagem hollywoodiana
O filme, que tem ganhado destaque nas plataformas de streaming e na televisão, nada mais é do que uma versão hollywoodiana do diretor norueguês Hans Petter Moland, sobre o seu Cidadão do Ano.
Na verdade, o filme se apoia na imagem de Liam Neeson no papel principal, um conhecido ator do público norte-americano. E conta, inegavelmente, com um bom elenco.
É Neeson quem encarna o personagem Nels Coxman, numa pouco convincente preparação ou suposto aprendizado para se tornar um matador, especialização que teria sido conquistada pela leitura de um romance policial.
Estariam em detalhes como esse os perfis de comicidade mórbida, conferidos ao filme? O mais preciso seria classificar o roteiro como irônico do que exatamente chamá-lo de cômico.
Apesar de muito festejado pela crítica, a história é banal: inconformado com o assassinato do seu filho, o até então pacato motorista de um removedor de neve, o personagem Nels, decide se vingar, pessoalmente, matando cada um dos integrantes de uma vasta gangue de traficantes de drogas.
A ironia se mostra evidente, mais uma vez, diante do obituário visualmente apresentado cada vez que uma execução dos criminosos é efetuada.
No topo dessa pirâmide está um milionário violento, que demonstra sentir o prazer da arrogância, forçando o filho a cumprir uma rotina alimentar nada prazerosa.
Ele tenta impor sua visão de mundo ao garoto inteligente, que prefere ouvir música clássica em vez dos sucessos curtidos pela multidão de alienados que se deliciam com as paradas de sucesso da moda imposta pela indústria fonográfica.
Embora extremamente violento, o machão asqueroso demonstra submissão somente à ex-mulher, que briga na Justiça pela guarda exclusiva do filho.
Talvez esteja aí, também, o tom de comicidade que tantos enxergam no filme: extremamente arrogante e violento, o milionário, que na verdade é o chefe da gangue, briga o tempo todo com a ex-mulher, que – em uma das cenas – impõe-se na discussão com a súbita pressão das mãos na parte mais sensível do bandidão pra lá de mau caráter.
Há, certamente, trechos do filme em que a ironia se traduz pela contradição no comportamento de machões, quando estão dentro do carro, longe dos olhos do chefe.
A tentativa de impor a visão nada edificante da justiça com as próprias mãos, tão sujeita a injustiças irreparáveis, muitas vezes mais fatais do que as falhas igualmente nada perdoáveis do sistema judiciário, é reforçada pela presença dos policiais na trama.
A policial feminina é, o tempo todo, dissuadida em sua tentativa de investigar com seriedade a criminalidade e colocar ordem na bagunça de uma comunidade subjugada aos ditames de criminosos que infestam o ambiente.
As cenas incluem as tentativas da policial, empenhada até em adoçar sua relação com um ex-namorado, de modo a obter informações que a levem aos criminosos. Mas acaba se tornando uma ponta solta diante do desfecho dos assassinatos em série.
As mensagens de Vingança a Sangue Frio (que é só violência)
Num país como o Brasil, onde cenários tenebrosos, como os linchamentos e feminicídios, se mostram absurdamente persistentes em muitas regiões, as mensagens de Vingança a Sangue Frio, com a pregação de pretensa justiça com as próprias mãos, têm duas vertentes bem distintas.
Os falsos homens de bem, que se comprazem com a apologia às armas e se divertem com a violência (sim, eles existem), podem reforçar suas convicções de que o caminho da justiça com as próprias mãos se impõe como única alternativa.
Já os que dispõem de uma visão esclarecida sobre as consequências da violência como um mal evidente, que prejudica o país como um todo, certamente refletirão quanto à necessidade de se lutar pela correção das imperfeições dos sistemas judiciário e policial, mediante o severo combate às suas distorções e falhas.
O Brasil (e, de resto, o mundo) precisa de paz e tranquilidade para progredir, em benefício de toda a população.
Que futuro pode ter um país dominado por milícias e quadrilhas, onde médicos são assassinados na praia durante um simples bate-papo?
Que condição de progresso dispõe um país impedido de desenvolver um ramo de atividade que está entre os mais lucrativos – como o turismo – sem que as pessoas tenham coragem de visitar esse país chamado Brasil?
Parece não ter nada a ver com o filme em questão, não é mesmo?
Pois tem. Que Vingança a Sangue Frio (só violência em cena) sirva, ao menos, para incentivar profunda reflexão sobre o futuro de um país pretensamente abençoado por Deus, onde nossos filhos irão crescer.
Porque, se toda essa apologia da violência e da justiça com as próprias mãos começar a ser consertada hoje, ainda assim serão necessárias muitas décadas para que festejemos os bons resultados dessa batalha incansável contra a violência e as injustiças, tão presentes no dia a dia.
Vingança a Sangue Frio (Cold Pursuit)
Roteiro: Frank Baldwin e Kim Fupz Aakeson
Direção: Hans Petter Moland
Ano de Produção: 2019
No Elenco:
Liam Neeson: Nels Coxman
Laura Dem: Grace Coxman
Emmy Rossum: Kim Dash
Tom Bateman: Trevor Calcote
Julia Jones: Aya
Tom Jackson: White Bull
Domenick Lombardozzi: Mustang
Sobre o Autor
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