Destaque Capitães

A vontade que se tem é a de que, tanto a obra de Jorge Amado, como o filme dirigido por sua neta, Cecília Amado, estejam ultrapassados. Mas, infelizmente, Capitães da Areia continua atual.

Referimo-nos, evidentemente, à situação de miséria que, se não é a mesma, até piorou. E parece não ter fim, pois a Bahia prossegue como um dos estados brasileiros em que meninos de rua continuam famintos e abandonados à própria sorte (ou azar). E ainda enfrentam muita violência.

Capitães da Areia continua atual

Meninos não são feitos de areia

Pode parecer assunto secundário, mas a forma como vem sendo escrito o título do livro denota o nível de analfabetismo funcional em que se encontra um país que estraçalha o seu próprio idioma.

O título do livro é Capitães da Areia, ou seja, refere-se à turma de menores que vivem num trapiche e que, como curtem um hábito inevitável dos baianos, encontram nas areias da praia um dos seus ambientes preferidos.

Capitães da Areia descansam nas areias da praia

Essa é uma rotina, até para espantar o estresse. E, no caso dos meninos, para tentar aliviar a tensão de cada dia na luta por um prato de comida. Ou de uma simples laranja para tentar matar a fome, como ilustra o filme.

No entanto, numa demonstração inequívoca de que não sabem sequer interpretar o significado do título da obra, pessoas que assinam resenhas, identificando-se como licenciadas em Letras, ou ostentam canais no YouTube como especialistas em Literatura, insistem em renomear o título do livro para Capitães de Areia.

Capitães da Areia continua atual ao mostrar a miséria na Bahia e no Brasil

Não, os meninos não são feitos de areia, embora a cruel realidade de um Brasil que permanece campeão de desigualdade social persista na tentativa de dissolver criaturas que tentam sobreviver em ambientes miseráveis.

Repetimos: não se trata de preciosismo. O título de um livro pode até não ser determinante de seu sucesso ou insucesso. Ainda que alguns títulos sejam geniais, como A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Que, por sinal, foi um sucesso internacional.

Passeios de barco na Bahia aliviam o estresse

Mas, sim, o Autor tem o cuidado de escolher um título que represente sua obra, que seja fiel ao seu conteúdo e que (por que não?) seja atraente e induza à curiosidade pela leitura.

Este Autor que vos escreve já passou por isso. Em A Festa de Fim do Mundo, enfrentamos o dissabor de, por inúmeras vezes, encontrar o título em matérias jornalísticas distorcido para A Festa do Fim do Mundo. Como se, a título meramente comparativo, se usasse a expressão festa do aniversário, em vez de festa de aniversário, quando nos referimos à comemoração pela passagem de mais um ano de vida.

Desculpem-nos a insistência, mas é que a dificuldade de interpretação e a frequência com que nos deparamos com assassinatos da Língua Portuguesa, em suas particularidades de expressão, têm se revelado assustadoras.

Capitães da Areia continua atual e assustador

Capitães da Areia continua atual, e assustador

O livro Capitães da Areia continua atual. E a realidade que ele transmite continua assustadora. A obra literária foi publicada em 1937, por Jorge Amado, que faleceu em 2001. O filme dirigido por sua neta, Cecília Amado, foi lançado em 2011. Ou seja: dez anos após a data da morte do escritor.

Isso reforça a nossa avaliação de que a versão cinematográfica teve, como maior motivação, prestar uma homenagem ao Autor, que figura como um dos escritores mais populares e de maior sucesso no Brasil, com incontáveis traduções de suas obras para atender, também, aos leitores de inúmeros outros países.

Capitães de areia moram num trapiche

Uma rápida pesquisa na internet nos mostra que Amado teve sua obra traduzida para 49 idiomas e dialetos, e foi editada em 52 países.

A propósito, o próprio Jorge Amado, em uma entrevista, chegou a admitir que esse número de edições poderia ser muito maior, pois a ele teriam sido trazidos exemplares de edições da indústria da pirataria.

Essas questões todas reforçam, também, nossa conclusão de que o filme foi uma homenagem não só a Jorge Amado, como também à Bahia.

Evidencie-se o fato de ser um filme exuberantemente visual, com uma fotografia que destaca as cores e as paisagens deslumbrantes com que os baianos foram premiados pela natureza.

A exuberância da Bahia

É lógico que isso não é privilégio da Bahia, porque, como diz a canção de autoria de Jorge Ben Jor, o Brasil é um país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.

É lamentável que não tenha sido, aparentemente, merecedor da mesma bênção no tocante à sua classe política, respaldada por uma burguesia escravocrata, racista, egocêntrica e egoísta, que mantém o país em atraso social por vários séculos.

Ou seja: Capitães da Areia continua atual sob inúmeros aspectos, embora o Brasil tenha potencial para se livrar de suas mazelas. Mas ainda mantenha, inclusive, brasileiros em situação de trabalhado escravo.

No tocante à política, Jorge Amado foi alvo da turbulenta trajetória brasileira, tendo seus livros censurados e queimados em praça pública durante o Estado Novo do ditador Getúlio Vargas, no mais evidente estilo nazista.

Capitães da Areia continua atual mostrando a fome dos meninos de rua

O maior número de exemplares destinados à fogueira foi exatamente de Capitães da Areia, definido por Cecília Amado, em uma entrevista à emissora BBC, como “uma denúncia” de uma gritante situação social de extrema pobreza, que atingia, de forma acentuada, os jovens e as crianças. E que atinge – repetimos – ainda hoje.

“Não é à toa – disse Cecília Amado, na entrevista – que os livros foram queimados”. Isso aconteceu porque, para o poder dominante, “era uma vergonha” mostrar essa miséria e degradação humana.

Com fundo musical muito bem escolhido e paisagens deslumbrantes, o filme retrata a luta pela sobrevivência dos menores abandonados, que praticam furtos e outros crimes para sobreviverem no trapiche.

Pedro Bala sofre violência policial

A violência policial também é retratada, com destaque para as cenas em que Pedro Bala, o líder do grupo, é detido e confinado, sendo submetido à fome e à sede em uma verdadeira jaula, depois de ter sido xingado e humilhado pelo delegado.

O sincretismo religioso, por sua vez, também não poderia faltar, como marca da sociedade baiana, nem o desrespeito a que os cultos de origem africana são submetidos – mais uma marca de atualidade do filme em mostrar realidades perversas que persistem, ou até se agravam, em pleno século XXI.

O elenco é de amadores

Cecília Amado teria preferido fazer uma demorada seleção para compor o elenco, selecionando crianças e jovens sem qualquer experiência em arte dramática.

O objetivo teria sido o de dar maior legitimidade e naturalidade às interpretações dos personagens, cujas alcunhas foram preservadas, tais como, além de Pedro Bala, o Professor (que roubava livros para contar histórias ao grupo), Volta Seca, Boa Vida, João Grande e Pirulito.

Sem Pernas, assim chamado por ter um defeito físico que o obrigava a mancar, teria sido descoberto pela própria Cecília Amado em sua demorada busca pelos atores amadores que tivessem semelhanças com os personagens criados por Jorge Amado.

A amável e doce Dora

O lado doce da história é representado pela presença de Dora (foto acima), uma menina na flor da idade, graciosa e simpática, que acaba se apaixonando por Pedro Bala, para frustração do Professor, que foi quem a integrou ao grupo.

Apesar de a interpretação de alguns dos amadores selecionados deixar a desejar, devido à própria inexperiência, no geral a versão cinematográfica de Capitães da Areia acaba sendo visualmente agradável. E o filme, de um modo geral, não decepciona.

Um final dramático

As situações presentes no livro (sobre o qual você pode ter acesso clicando no banner ao final deste artigo, logo após a lista de parte do elenco) não foram totalmente exploradas, o que era de se esperar.

Até porque a linguagem cinematográfica é diferente da linguagem literária. E retratar todas as passagens do livro seria praticamente impossível, sem contar que tornaria o filme demasiadamente longo.

E o próprio desfecho, em suas movimentadas e simbólicas cenas finais, teve mais um destaque visual (como já ressaltamos) do que de conteúdo dramático.

Evidentemente, não podemos adiantar todo esse conteúdo, para não praticarmos spoiler.

Assista para saber mais…



Capitães da Areia

País: Brasil

Ano de lançamento: 2011

Direção: Cecília Amado

Codiretor e diretor de Fotografia: Guy Gonçalves

Roteiro: Cecília Amado e Hilton Lacerda

Música: Carlinhos Brown

Disponível no catálogo da HBOmax

Elenco Capitães

No Elenco:

Jean Luis Amorim: Pedro Bala

Ana Graciela: Dora

Roberto Lima: Professor

Israel Gouvea: Sem Pernas

Ana Cecília Costa: Dalva

Zéu Britto: Aurélio

Elcian Gabriel: Almiro

Paulo Abade: Gato



Capitaes da Areia

Sobre o Autor

Gerson Menezes
Gerson Menezes

O objetivo do Autor não é o de concentrar-se na linguagem rebuscada do tecnicismo cinematográfico, mas de apresentar o que há de melhor (ou de pior) na filmografia nacional e internacional, e concentrar-se no perfil dos personagens. As análises serão sempre permeadas pela vertente do humanismo, que, segundo o Autor, é o que mais falta faz ao mundo em que violência e guerra acabam compondo o cenário tanto dos filmes como da realidade de inúmeros países, entre os quais o Brasil.

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