Em minhas andanças cinematográficas, tornei-me fã de um cineasta francês ao assistir aos festivais Godard no Cine Cultura.
Para quem conhece cinema de outras épocas, fica evidente que estamos falando de Jean-Luc Godard.
Eu era ainda um garoto. Ou, como cantava o saudoso Belchior, era “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”.
Aliás, nem no banco nem no bolso. Mas arranjava uns trocados com minha mãe para ir ao Cine Cultura, que ficava na avenida W3 Sul, em Brasília.
Essa sala de cinema fechou em 18 de novembro de 1976. E o golpe final, segundo nos informa o Google, foi a exibição de um filme cujo título era algo como A Ilha das Cangaceiras.
Havia apenas oito espectadores assistindo ao filme e a sala de projeção acabou sendo fechada por ordem judicial.
O argumento, à época, era de que a W3 Sul não poderia ter cinemas por ser uma “avenida comercial”, como se cinema não fosse, também, uma forma de comércio.
Obviamente, alguns filmes são apenas comércio, enquanto outros são também arte.
Mas isso é história para outro artigo.
Decadência da W3
O fato, no entanto, é que a W3 Sul começava a enfrentar uma fase de decadência, por vários fatores, entre os quais o surgimento dos shoppings e, também, as novas formas de assistir a filmes.
Isso deu início ao abandono da avenida, que, nos tempos áureos, era a grande opção de comércio e atravessava toda a chamada Asa Sul.
Mas, vamos a Godard
Eu caminhava da Superquadra 107 Sul, onde eu residia naquela época, até o Cine Cultura, toda vez que anunciavam um Festival Godard ou um filme de qualidade.
E não demorou muito tempo para Godard se transformar em figura destacada entre jovens, uma espécie de coqueluche, como se dizia.
Renato Russo, inclusive, o menciona em seu sucesso musical Eduardo e Mônica:
Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver um filme do GodardDuas ou três coisas sobre Godard
Há muitas coisas que chamam a atenção na cinematografia de Godard.
Uma delas era a sua capacidade de dar títulos curiosos aos seus filmes, o que resultava num verdadeiro convite para assisti-los.
Outra característica (que se transformou em mais uma de suas inovações e marcas pessoais) era a sua agilidade e ao mesmo tempo suavidade em passar de uma cena a outra.
E um dos recursos que ele passou a usar foi o de filmar com a câmera na mão, o que lhe conferia essa agilidade.
Sua maneira peculiar de contar histórias também resultava em sensualidade nas cenas.
Duas ou três coisas que ele sabia
Seu filme Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela já transmitia e provocava, ao mesmo tempo, sensualidade e curiosidade em torno do que iríamos assistir.
O seu olhar crítico se revelou em uma das declarações que ele teria dado sobre o filme.
A história coincide – segundo ele mesmo teria definido – “basicamente com uma das minhas teorias mais profundas”.
Isso porque, ainda na perspectiva de Godard, o filme mostrava que, para viver na sociedade parisiense da época, “a pessoa era forçada a se prostituir de uma maneira ou de outra, ou então viver de acordo com as condições que se assemelham às da prostituição”.
Inovando a linguagem cinematográfica
Um dos cineastas mais icônicos e revolucionários da história do cinema, Godard transcendeu, com sua obra, barreiras artísticas e culturais ao longo de décadas.
Nascido em 3 de dezembro de 1930, na capital francesa, passou a ser amplamente reconhecido como uma das figuras centrais da Nouvelle Vague (ou Nova Onda).
Estamos falando, evidentemente, do movimento cinematográfico francês que começou a se destacar no final dos anos 1950 e início dos anos 1960.
Com abordagem inovadora e sua constante experimentação da linguagem cinematográfica, a Nouvelle Vague fez surgir um novo paradigma na arte de fazer filmes, rompendo com as convenções do cinema tradicional.
O início como crítico de cinema
Desde que iniciou sua carreira como crítico de cinema, Godard demonstrou um crescente interesse pela teoria cinematográfica.
Isso foi se aprofundando a partir de sua experiência na revista Cahiers du Cinéma, onde suas críticas eram publicadas.
Godard fazia parte de um grupo de intelectuais e cineastas que incluía outros nomes da época, como François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette.
Esse período de exercício crítico sobre cinema foi essencial para moldar a visão de Godard, que começou a ver a cinematografia como uma forma de arte em constante diálogo com outras expressões culturais, como a literatura, a pintura e a filosofia.
Sua estreia como diretor de longa-metragem com À bout de souffle (Acossado, 1960) marcou um divisor de águas no cinema mundial.
O filme, estrelado por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, destacou-se pelo uso inovador de jump cuts, a narrativa não linear e o tom improvisado.
São características que se tornariam marcas registradas do estilo de Godard. E Acossado (com esse título exibido no Brasil) não apenas foi um grande sucesso de crítica e público, mas também influenciou gerações de cineastas ao redor do mundo.
Década de 1960 dá impulso à carreira
Nos anos 1960, Godard dirigiu obras que hoje são consideradas clássicos, como Le Mépris (O Desprezo, 1963), estrelado por Brigitte Bardot, e Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas, 1965), que exploravam temas como alienação, desejo e o papel do artista na sociedade.
Outra obra-prima desse período foi Alphaville (1965), uma ficção científica distópica que misturava noir e crítica social, desafiando as expectativas do público.
Embora muitos desses filmes fossem elogiados por sua inventividade, outros, como Made in U.S.A. (1966), provocaram avaliações e receptividade positivas e negativas, devido à natureza experimental e politicamente carregada de suas narrativas.
Visão política considerada radical
A relação de Godard com a política foi outro aspecto central de sua carreira.
Durante o final dos anos 1960 e 1970, ele passou a adotar uma postura considerada cada vez mais radical, alinhando-se com ideais marxistas e maoístas.
Filmes como La Chinoise (A Chinesa, 1967) e Week-end (1967) são representativos dessa fase de maior engajamento político, abordando temas como o imperialismo, a luta de classes e a alienação capitalista.
A abordagem de Godard durante esse período, entretanto, foi polarizadora.
Embora tenha atraído elogios por sua coragem e ousadia, também enfrentou críticas por ser hermético e, paradoxalmente, excessivamente didático, alienando parte de seu público.
Nos anos seguintes, Godard continuou a experimentar novas formas de narrativa e tecnologia.
Passou a colaborar com outros cineastas e artistas e permaneceu ativo na produção de filmes que desafiavam as convenções de gênero e estrutura.
Filmes como Sauve qui peut (la vie) (Salve-se Quem Puder – A Vida, 1980) se inserem entre os exemplos típicos de seu retorno a uma abordagem mais introspectiva e visualmente deslumbrante.
Ainda assim, sua obra permaneceu marcada pela complexidade e pelo desejo de provocar o espectador.
Um cineasta reconhecido e controvertido
Apesar de sua contribuição inestimável ao cinema, Godard não esteve isento de controvérsias.
Foi acusado de antissemitismo em alguns momentos, devido a comentários e representações problemáticas em seus filmes, o que gerou debates acalorados no meio cinematográfico e acadêmico.
No entanto, muitos críticos e estudiosos argumentam que essas acusações devem ser contextualizadas dentro da complexidade de sua obra e de seu estilo artístico.
Em contrapartida, Godard também foi amplamente elogiado por sua influência duradoura.
Cineastas como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Wong Kar-wai citam sua obra como inspiração.
Foi agraciado com diversos prêmios ao longo de sua carreira, incluindo um Oscar honorário em 2010, que ele, fiel a seu espírito iconoclasta, optou por não receber pessoalmente.
Desafio às normas sociais
O impacto de Godard transcende suas realizações cinematográficas.
Ele foi um pensador e inovador que viu o cinema não apenas como entretenimento, mas como uma forma de questionar a realidade e desafiar as normas sociais e artísticas.
Sua morte assistida na Suiça (cuja legislação a permite), em 13 de setembro de 2022, aos 91 anos, marcou o fim de uma era.
Mas seu legado continua vivo, perpetuado em sua vasta filmografia e na obra daqueles que foram inspirados por sua visão.
A vida e a carreira de Jean-Luc Godard são uma narrativa de experimentação, paixão e ruptura.
Ele desafiou constantemente o status quo, transformando o cinema em uma plataforma para o pensamento crítico e a inovação artística.
Embora sua obra nem sempre tenha sido facilmente acessível ou universalmente compreendida, sua importância na história do cinema é incontestável.
Sua influência é sentida até hoje, tanto em termos estéticos quanto filosóficos, confirmando sua posição como um dos maiores cineastas de todos os tempos.
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