A vida do diretor japonês Akira Kurosawa é marcada por acontecimentos trágicos, como a morte de uma irmã por doença e o suicídio de um irmão. O ramake do seu filme original, Ikiru, consegue transformar o lema de Viver em um poema, representado pela transformação do protagonista que, após desenganado pelo médico, somente a partir de seu câncer terminal procura encontrar um sentido em sua vida.
Até então, Mr. Williams, o protagonista, é um funcionário burocrata da prefeitura de Londres, que costuma empurrar com a barriga todos os pedidos que vão surgindo.
“Não será um problema”, era uma das suas expressões favoritas, quando abandonava as reivindicações que chegavam à repartição numa pilha de processos que mantinha em frente à sua mesa.
Viver como em um poema é o que busca o circunspecto Mr. Williams
Circunspecto, solitário, calado, Mr. Williams é um viúvo de semblante sério e pouco disposto a diálogos, mesmo com os funcionários que trabalham sob o seu comando.
Diante deles, reduz seus cumprimentos, ao chegar à estação final de trem, apenas a um leve toque no chapéu e a um insosso “Bom dia, cavalheiros”, e segue adiante.
No trem, em conversas diante do novato Peter Wakeling, que chega para trabalhar na repartição, os novos colegas vão logo avisando que Mr. Williams jamais costuma se juntar ao grupo.
Logo no seu primeiro dia de trabalho, Peter percebe que a rotina da repartição se resume a passar de um setor a outro, indefinidamente, as reivindicações da comunidade, cujo destino é, quase sempre, o arquivamento.
A vida segue assim, monótona, até que Mr. Williams recebe a notícia de que está perto de morrer. E resolve achar um jeito de… Viver.
Mas viver de um jeito que o faça ter prazer na vida parece fora do alcance de Mr. Williams, que, em sua solidão, não consegue desabafar nem com o filho e com a nora sobre seu estado terminal.
Ele tenta se divertir em companhia de um solidário desconhecido, mas tudo termina em embriaguez e na tristonha interpretação de uma canção.
Em seguida, na companhia da sempre alegre, brincalhona e sorridente Margaret, sua ex-funcionária, busca uma forma de achar graça na vida.
Mas ela também acaba se preocupando com o drama do antigo patrão.
Viver apresenta uma dinâmica que mantém a atenção do espectador
Pelo ritmo do filme, Viver poderia se mostrar monótono. Mas consegue escapar disso, devido à sequência de situações e de diálogos que vão surgindo, em uma dinâmica que mantém a atenção do espectador.
Até mesmo as cenas finais, inesperadas, acabam por transformar o filme Viver em um poema, embora nostálgico, mas que simboliza a verdadeira razão (talvez a única) que Mr. Williams acabaria atribuindo a si mesmo como missão de vida.
As diferenças entre o filme dirigido por Akira Kurosawa e o remake dirigido por Oliver Hermanus começam pela mudança de Tóquio para Londres como cenário dos acontecimentos.
Isso altera muita coisa, levando-se em conta o clima em que vivia o Japão, poucos anos depois da derrota do Eixo frente aos aliados, na Segunda Guerra Mundial.
O Reino Unido, por sua vez, integrava a aliança com França, EUA e a antiga União Soviética, que saiu vitoriosa, embora a Inglaterra ainda sofresse as consequências do conflito.
De qualquer modo, a nova montagem cinematográfica continuou sendo ambientada nos anos 1950, como é o caso do filme de Kurosawa.
O mérito da direção foi reconstruir com fidelidade o cenário da época, incluindo cores suaves em substituição ao preto e branco e valendo-se de uma trilha sonora que recebeu elogios.
Menos prolongado do que o filme de Kurosawa, e com novo roteirista, Viver conseguiu, de qualquer modo, retratar o conservadorismo de uma Inglaterra cheia de preconceitos e com a marca de relações interpessoais muitas vezes difíceis, preenchidas por ironias, rivalidades e boa dose de hipocrisia.
A malícia mal disfarçada entre os londrinos acabou afetando a imagem da relação respeitosa que Mr. Williams manteve com a jovem Margaret, que também sentiu o peso das insinuações maledicentes.
Hipocrisias londrinas e rivalidades à parte, os antigos funcionários do circunspecto Mr. Williams, de qualquer modo, acabaram reconhecendo o legado deixado pelo antigo chefe.
Mas acabaram, também, deixando brechas para se concluir que nem tudo mudara, apesar do exemplo marcante deixado por Mr. Willians sobre valores como solidariedade e presteza nas funções que exerciam em atendimento à comunidade.
Mr. Willians mudou, diante da morte iminente. Será que seus antigos funcionários, mesmo diante da possibilidade de transformarem o viver em um poema, inclusive por serem relativamente jovens, continuaram os mesmos?
Viver (Living)
Produção: Reino Unido, Japão, Suécia
Lançamento: 2022
Estreia no Brasil: 2023
Direção: Oliver Hermanus
Roteiro adaptado do original: Kazuo Ishiguro, Nobel de Literatura de 2017.
No Elenco:
Bill Nighy: Mr. Williams
Aimee Lou Wood: Margaret Harris
Alex Sharp: Peter Wakeling
Tom Burke: Sutherland
Adrian Rawlins: Middleton
Oliver Chris: Hart
Zoe Boyle: Mrs. McMasters
Patsy Ferran: Fiona Williams
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