Homem com H

O filme Homem com H foi concebido como um tributo à obra icônica do cantor e performer Ney Matogrosso, uma figura de destaque na evolução da música popular brasileira, que se tornou a presença mais destacada do grupo Secos & Molhados.

As cenas iniciais deixam evidente que a superação de um ícone era sua caminhada inevitável: talentoso e ao mesmo tempo desafiador, Ney Matogrosso teve que enfrentar a incompreensão de um pai repressor (interpretado por Rômulo Braga), que quase no final da vida sucumbe diante do inevitável reconhecimento do talento do filho rebelde.

As cenas iniciais já dão a dimensão do drama pessoal. Espancado pelo pai quando ainda criança (interpretação de Davi Malizia), que queria obrigar o filho a chorar e dizia que não aceitaria “criar filho para ser artista”, Ney resiste à surra mesmo diante do apelo do irmão para que, afinal, chorasse.

Jovem dedicado à arte e com projeto de se tornar ator, ele transmite o potencial de sua rebeldia desafiando novamente o autoritarismo paterno: “Não sou gay. E no dia que eu for todo mundo vai ficar sabendo”.

Dedicado a ser Ney Matogrosso

Dedicado a ser Ney Matogrosso

Já como adulto, Ney é interpretado pelo ator Jesuita Barbosa, sob a direção de Esmir Filho, também roteirista.

A preparação exigiu dedicação e muito sacrifício, com rigorosa dieta para emagrecer (“Ney é muito magrinho”, dizia, para se empenhar ao máximo).

Entregou-se a uma intensa preparação física e vocal, que incluiu perder 12kg com acompanhamento médico, aulas de dança e canto, e um profundo estudo para conseguir absorver todo o sentido do universo do artista.

A caracterização envolveu maquiagem, perucas e próteses, mas a atuação se concentrou em capturar a essência e a energia de Ney em vez de apenas procurar imitá-lo nas cenas, onde se concentrou em ser o mais fiel possível à performance de Ney Matogrosso no palco. 

Nem tão molhados

Nem tão molhados

Desde seu surgimento ao lado do grupo Secos & Molhados na década de 1970, Ney se destacou por sua voz potente e por sua determinação em desafiar normas sociais e estéticas, o que lhe conferiu um papel revolucionário na cultura brasileira.

E foi novamente a sua rebeldia que o fez afastar-se da banda, empenhado em lutar para manter-se fiel à sua personalidade e convicções.

Em meio à repressão da ditadura militar, era frequentemente pressionado a suavizar seus trejeitos no palco, vistos como ousados e indecentes, mas procurava resistir até onde isso não o afastasse do seu projeto artístico.

Depois de algum tempo e das primeiras apresentações, a dupla que formava com ele os Secos & Molhados passou a se queixar que também estava sendo vista como se fosse homossexual. “É só vocês dizerem que não são”, reagia o artista.

Mesmo assim permaneceram juntos e chegaram a lançar dois álbuns, que fizeram estrondoso sucesso, até que Ney começou a sentir que não estava feliz e lançou-se à carreira solo, de onde não saiu mais.

Um legado que resiste ao tempo

Um legado que resiste ao tempo

O filme Homem com H se propõe a revisitar esse legado de Ney como cantor de voz e performance únicas no palco, refletindo sobre a sua relevância e o impacto que teve nas gerações seguintes.

Na construção do filme, pode-se vislumbrar a intenção de retratar a que ponto a obra de Ney Matogrosso transcende a mera performance musical, abrindo espaço para discussões sobre identidade, gênero e a liberdade de expressão.

O filme tem roteiro e direção de Esmir Filho a partir de biografia de autoria de Júlio Maria, e retrata como as canções de Ney e as apresentações do grupo Secos & Molhados abordaram temas que ainda são pertinentes no contexto atual.

Em entrevistas que concedeu já após o lançamento do filme no catálogo da Netflix, Ney Matogrosso relembra as dificuldades e preconceitos que teve que enfrentar no decorrer de sua carreira.

O cenário inclui, obviamente, o tempo de repressão política da década de 1970, com a censura procurando impor limites à sua performance ousada no palco.

Além disso, Ney Matogrosso foi alvo de preconceitos, segundo relata, por parte de um veículo de comunicação, mesmo diante do seu sucesso.

A rejeição partia do Jornal do Brasil, que ainda se destacava na grande imprensa, e que se recusava a publicar matérias sobre Ney Matogrosso nos anos 1970, mesmo diante de seu sucesso.

Segundo relatos do próprio Ney Matogrosso, o editor do jornal alegou que jamais publicaria nomes de travestis, razão pela qual o artista foi boicotado por cerca de dois anos.

A propósito, Ney sempre enfatizou que nunca foi travesti e que a postura desse editor refletia o preconceito e o falso moralismo da época.

A edição impressa do Jornal do Brasil não circula mais, desde 2019, o que permite uma revanche por parte do próprio artista, quando lembra que ele ainda está em plena atividade, ao contrário do jornal que o discriminava.

Marco de uma época

A audiência do filme Homem com H encontra um espaço para se reconectar com a música que marcou épocas e moldou a identidade de muitos músicos.

Além de proporcionar um mergulho na obra de Ney Matogrosso, a proposta é de que os espectadores sintam-se motivados a refletir sobre a importância de um artista que, ao longo dos anos, se manteve relevante e ativo na cena musical brasileira.

A produção lançou-se ao desafio de não apenas reanimar a memória, mas também de promover discussões significativas sobre a arte e sua influência na sociedade contemporânea.

Missão: ser Homem com H

Ambientado em um período de transição cultural e social no Brasil, o filme contextualiza sua narrativa nos tumultuosos anos 70, quando a arte e a música se tornaram poderosas formas de resistência e expressão.

A trama principal segue a ascensão da banda, desde suas performances revolucionárias até o impacto profundo que tiveram na música popular brasileira.

Os personagens centrais são representações não apenas de Ney Matogrosso, mas também de outros integrantes da banda, cada um trazendo uma perspectiva única sobre os desafios enfrentados naqueles tempos complicados.

O filme destaca a personalidade vibrante de Ney, suas escolhas artísticas audaciosas e sua contribuição para a liberdade de expressão no Brasil.

Além disso, as interações com os demais membros da banda, suas disputas criativas e as tensões internas são abordadas, criando um rico panorama da dinâmica grupal.

Juntamente com os personagens, são introduzidas influentes figuras da época, que ajudam a traçar um contexto histórico mais amplo.

A narrativa se desdobra por meio das performances no palco, entrevistas e elementos documentais, o que intensifica a conexão emocional do público com a história e os desafios enfrentados.

Ao longo do filme, temas complexos como a sexualidade, identidade e resistência cultural são explorados com sensibilidade, tornando Homem com H uma reflexão não apenas sobre Ney Matogrosso e Secos & Molhados, como também sobre a busca contínua por liberdade e autenticidade na expressão artística.

Temas centrais sem disfarces

Homem com H traz à tona temas centrais que se entrelaçam na obra de Ney Matogrosso e na do grupo Secos & Molhados, destacando questões fundamentais da identidade, liberdade de expressão e resistência cultural.

Esses temas são especialmente pertinentes no contexto brasileiro contemporâneo, onde a música desempenha um papel crucial na formação de narrativas sociais e culturais.

Um dos aspectos mais evidentes é a identidade, um tema que se manifesta através das performances de Ney Matogrosso.

Ele desafia normas de gênero e expressa uma individualidade que se identifica com uma parte significativa da população que busca se reconhecer em diferentes formas de ser e de viver.

As abordagens artísticas de Matogrosso e da banda Secos & Molhados refletem uma busca por autenticidade em meio a pressões sociais, permitindo que o público se sinta mais à vontade para explorar suas próprias identidades.

Além disso, a liberdade de expressão é um tema preponderante na narrativa do filme. Em uma era em que a censura e o controle de discursos ainda persistem, a música de Ney Matogrosso e de Secos & Molhados atua como um poderoso veículo de afirmação e resistência.

As letras provocativas e as imagens de suas performances desafiam os limites impostos pela sociedade, promovendo uma reflexão crítica sobre a realidade que as pessoas sempre enfrentam.

Finalmente, a resistência cultural é um elemento indispensável na análise dos temas abordados.

A música, como arte, possui a capacidade de unir vozes e provocar transformações, criando espaços de diálogos e questionamentos.

No Brasil, onde os desafios à diversidade cultural são frequentes, a obra de Matogrosso e do grupo Secos & Molhados serve como um símbolo de luta e expressão, incentivando novas gerações a reivindicarem seu lugar na sociedade.

O impacto da música, portanto, transcende o entretenimento ao tornar-se uma forma de ativismo social.

Visão crítica da produção

O filme oferece uma reinterpretação significativa do legado de Ney Matogrosso e da icônica banda Secos & Molhados.

Desde a sua direção até a atuação, cada elemento da produção tem o seu papel no retrato desse importante capítulo da música brasileira.

A direção apresenta uma abordagem ousada, buscando equilibrar a nostalgia com a modernidade, o que resulta em uma narrativa cativante que prende a atenção do público.

O roteiro se destaca pela sua profundidade e a maneira como capta as nuances da vida de Ney Matogrosso.

A inclusão de diálogos impactantes e reflexões sobre a sociedade brasileira enriquece a trama, proporcionando um contexto histórico e cultural valioso.

No entanto, em algumas passagens, o excesso de referências pode exigir melhor entendimento por parte de espectadores menos familiarizados com a história da música popular brasileira, resultando em uma barreira de entendimento que pode dificultar a apreciação total da obra.

Em termos de atuação, o elenco apresenta performances notáveis, com destaque para o ator que interpreta Ney Matogrosso, trazendo à vida tanto a essência única do cantor quanto a complexidade de seu personagem.

A entrega emocional e a entrega física são impressionantes e, em muitos momentos, elevam a narrativa para um nível significativo.

Por outro lado, um ponto fraco notável está nas personagens secundárias, que, apesar de bem construídas, às vezes parecem não ter o espaço adequado para brilhar, limitando sua contribuição para a história total.

A escolha de locais, a direção de arte e o uso de luz são meticulosamente pensados, criando visuais que evocam a época de ouro de Secos & Molhados, ao mesmo tempo em que fazem uma ligação direta com os dias atuais.

Alguns efeitos visuais, embora inovadores, podem distrair, levando o espectador a se perder em detalhes que, embora esteticamente agradáveis, não contribuem substancialmente para o desenvolvimento da trama.

Repercussão de Homem com H

Repercussão de Homem com H

O filme gerou repercussão tanto na crítica quanto entre o público. Desde o seu lançamento, diversos críticos de cinema e televisão têm compartilhado suas opiniões, elogiando a forma como a narrativa explora a complexidade do universo musical do Brasil e a influência de Matogrosso na cultura nacional.

Nas redes sociais, as reações têm sido majoritariamente positivas. Os fãs de Ney Matogrosso, muitas vezes nostálgicos, expressaram suas emoções ao ver retratadas passagens de sua carreira que marcaram gerações.

Comentários sobre as performances, a trilha sonora e a direção do filme inundam plataformas como Twitter e Instagram.

Essa interação do público evidencia a paixão que o artista suscita e como ele continua a ressoar na cultura contemporânea.

O filme atraiu tanto admiradores antigos como novas gerações, que passaram a descobrir a riqueza do legado de Ney Matogrosso e do grupo Secos & Molhados.

Esse fenômeno gerou uma onda de discussões sobre a importância desses artistas para a música brasileira e como suas mensagens ainda são pertinentes hoje.

Além disso, o impacto sobre a comunidade artística em geral é inegável. O filme reabre debates sobre representatividade e inovação na arte, incentivando novos artistas a explorarem temas semelhantes em suas obras.

Portanto, Homem com H não é apenas uma reinterpretação do passado, mas um convite à reflexão sobre o presente e as transformações da música e da arte no Brasil, demonstrando a capacidade de Ney Matogrosso de continuar inspirando públicos diversos e engajados.

Curiosidades sobre Ney Matogrosso

Ney Matogrosso é indiscutivelmente uma das figuras mais icônicas da música brasileira, e sua trajetória é recheada de curiosidades que revelam muito sobre sua personalidade e carreira.

Nascido em 1º de agosto de 1941, em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, Ney iniciou sua carreira artística como ator de teatro antes de se tornar cantor.

Essa formação teatral é refletida em suas performances intensas, que frequentemente cruzam os limites do convencional.

Uma das características mais marcantes de Ney Matogrosso é seu estilo único, que inclui fantasias extravagantes e uma presença de palco que cativa o público.

Além de desafiar os padrões de vestuário da época, ele ajudou a incorporar uma estética cada vez mais ousada na cultura brasileira, usando a arte como forma de expressão política e social.

Ney também é conhecido por sua determinação em quebrar tabus. Ele foi um dos primeiros artistas brasileiros a abordar questões relacionadas à sexualidade de forma aberta, e sua coragem inspirou muitas gerações de fãs.

Outro fato interessante é que, embora seja um artista de renome, Ney sempre se esforçou para manter um nível de privacidade sobre sua vida pessoal, o que adiciona uma aura de mistério ao seu personagem público.

Com uma vasta discografia que abrange diversas décadas, sua música continua a influenciar novos artistas.

Em 2019, ele comemorou 50 anos de carreira, e essa longa trajetória mostra seu talento inegável e sua capacidade de se reinventar constantemente.

Sua trajetória de vida ajuda a entender melhor o artista por trás da figura de Ney Matogrosso, oferecendo uma nova perspectiva sobre sua importância cultural e musical no Brasil.

Impacto cultural

Impacto cultural de Secos & Molhados

Secos & Molhados, uma das bandas mais icônicas da música brasileira, emergiu na década de 1970 como um fenômeno cultural que desafiou os padrões estéticos e musicais de uma época marcada pela repressão.

Com Ney Matogrosso como uma de suas figuras centrais, o grupo se destacou pela sua sonoridade única, que misturava rock, MPB e influências teatrais, e também pelo seu forte engajamento social e político.

A banda conseguiu capturar o espírito de uma geração que buscava expressão e identidade em um contexto da ditadura militar, transformando suas apresentações em uma forma de resistência e crítica social.

A contribuição de Secos & Molhados para a música brasileira transcende seus sucessos comerciais.

O estilo visual e a performance arrojada de Ney Matogrosso contribuíram significativamente para o que se poderia chamar de uma nova linguagem artística.

A combinação de música e teatro, aliada à estética flamboyante, fez com que a banda fosse identificada como um movimento cultural inovador, que influenciou contemporâneos e gerações futuras.

As letras poéticas e muitas vezes subversivas de suas canções abordam temas como sexualidade, política e identidade, tocando questões relevantes que ainda ressoam na sociedade contemporânea.

Além disso, o legado de Secos & Molhados é evidenciado na maneira como desafiaram os estereótipos da masculinidade.

Ney Matogrosso representa um ícone queer na música brasileira, juntando-se ao rol dos grandes artistas que abriram caminhos para discussões sobre gênero e sexualidade, traçando uma linha de continuidade até a cena musical atual.

O impacto cultural da banda se estendeu para além do palco, perdurando na memória coletiva do Brasil, como um exemplo de expressão artística que reflete e molda a identidade nacional.

Valorização da música brasileira

O filme sobre Ney Matogrosso se insere na iniciativa da Netflix de dar o devido valor à música brasileira no que ela tem de melhor.

Estão inseridos no catálogo da Netflix produções como a cinebiografia de Cazuza, em O Tempo Não Para; o filme Somos Tão Jovens sobre Renato Russo, que fundou a emblemática banda Legião Urbana, o filme Elis, sobre a carreira dessa que é considerada a maior cantora brasileira; o
documentário sobre o maluco beleza Raul Seixas, sob o título O início, o fim o meio; o documentário Artista Brasileiro, sobre o talentoso Chico Buarque de Holanda, e também o
documentário A Luz do Tom, sobre o internacional Antônio Carlos Jobim, com base no livro escrito por sua irmã, Helena Jobim.

A Netflix abriu ainda espaço em seu catálogo para o movimento da Jovem Guarda, com Minha Fama de Mau, sobre Erasmo Carlos, e com Uma Noite em 67, que dá início ao movimento, em plena época da ditadura militar.


 

Sobre o Autor

Gerson Menezes
Gerson Menezes

O objetivo do Autor não é o de concentrar-se na linguagem rebuscada do tecnicismo cinematográfico, mas de apresentar o que há de melhor (ou de pior) na filmografia nacional e internacional, e concentrar-se no perfil dos personagens. As análises serão sempre permeadas pela vertente do humanismo, que, segundo o Autor, é o que mais falta faz ao mundo em que violência e guerra acabam compondo o cenário tanto dos filmes como da realidade de inúmeros países, entre os quais o Brasil.

    0 Comentários

    Deixe um comentário

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    Solicitar exportação de dados

    Use este formulário para solicitar uma cópia de seus dados neste site.

    Solicitar a remoção de dados

    Use este formulário para solicitar a remoção de seus dados neste site.

    Solicitar retificação de dados

    Use este formulário para solicitar a retificação de seus dados neste site. Aqui você pode corrigir ou atualizar seus dados, por exemplo.

    Solicitar cancelamento de inscrição

    Use este formulário para solicitar a cancelamento da inscrição do seu e-mail em nossas listas de e-mail.