Mudei-me para Brasília quando eu tinha apenas 9 anos de idade. Poucas vias internas estavam asfaltadas e vivi aventuras memoráveis. E até cinema sem pagar ingresso no Cine Brasília cheguei a frequentar. Mas isso eu conto daqui a algumas linhas.
Na Superquadra onde morei pela primeira vez havia uma extensa área de solo sem grama, sem cimento e sem qualquer tipo de revestimento. Era terra crua, que virava uma grande poça d’água quando chovia muito.
Descíamos dos apartamentos e transformávamos aquela área num centro rústico de lazer, com carrinhos de brinquedo enfrentando o barro vermelho.
Perto do prédio havia um parquinho com muita areia, onde levei um grande susto. É que eu brincava sentado na areia e um amigo (não sei se foi sem querer) fez essa areia espirrar nos meus olhos pisando numa espécie de gangorra que eu havia improvisado.
Não sei de quem eu havia escutado que areia nos olhos poderia cegar. Mas, aos 9 anos de idade, homem ainda chora (risos), e as lágrimas fizeram a areia escorrer dos meus olhos.
Naquela época dava para ir a pé a uma emissora de televisão onde passava um programa de auditório. Era uma turma grande de amigos, e um deles fazia questão de me sacanear, acho que pelo meu jeito de andar. E eu me desesperava, enquanto o irmão dele demonstrava a verdadeira amizade, tentando me acalmar.
Foi em Brasília a primeira namorada e as primeiras frustrações de possíveis namoradas que eu não soube conquistar, com minha meninice ainda abalada pela falta de confiança, um dissabor que eu relato no meu primeiro livro, A Festa de Fim do Mundo.
Vi bandas de rock nascerem e se desmancharem. Eu ia aos ensaios e comecei a me interessar por bateria, um instrumento que acabei só conseguindo comprar depois que me casei, já aos 21 anos de idade. E então passei a ter minhas próprias bandas.
Ainda garoto, sentava-me embaixo do prédio, numa pequena mureta. Pouco depois chegava um crooner de uma das bandas, que se tornou um grande amigo e gostava de conversar comigo. Eu era muito menino ainda e ele já era adulto, lá pelos 18 anos, e gostava de conversar até sobre os programas de TV e sobre cinema, porque me achava maduro para a idade.
Essa banda onde esse meu amigo cantava chegou a gravar um disco, que eu me arrependo até hoje de não ter pedido à minha mãe para comprar. E que teria se tornado uma relíquia da época, em minha coleção de antigos bolachões.
Em compensação, convenci uma das minhas irmãs a me emprestar uns trocados para juntar com minha mesada e comprar meu primeiro disco dos Beatles, a banda famosa cujo filme não consegui assistir com minha amiga Sônia, impedido pelo namorado ciumento dela.
Fiz aulas de teatro, uma grande ajuda para superar minha timidez. E chegamos a apresentar peças fora de Brasília.
Numa dessas incursões teatrais, reencontrei um cantor que conseguia, com sua voz incrível, juntar na janela dos prédios em volta uma multidão de moradores que ficavam escutando ele cantar ao som de um violão, debaixo do prédio onde eu morava.
Foi quando comecei a perceber a maldade, a inveja e a covardia humana, ao saber que ele fora agredido por um grupo de malandros irritados com o fato de as namoradas deles prestarem mais atenção naquele cantor talentoso do que neles próprios.
Com o tempo, uma das paixões que se consolidou foi pelo cinema, no que fui ajudado pela proximidade entre o prédio onde eu morava e o Cine Brasília. E que foi o cenário-tema destas memórias, quando vivi a experiência de ir ao cinema sem pagar ingresso no Cine Brasília.
Nas conversas que mantínhamos com os amigos que moravam perto de nós, surgia sempre a proposta de andar alguns passos para assistir a algum filme em exibição naquele cinema a poucos passos.
Dessas coisas que acontecem no Brasil, o Cine Brasília foi relegado ao esquecimento pelos administradores públicos que se sucederam durante a ditadura militar
Lembro-me quando essa deterioração do cinema começou a se agravar exatamente na sala de exibição onde, alguns anos depois, cheguei a assistir a um show ao vivo de Elis Regina, junto com a mulher com quem eu estava casado.
Mas um dos acontecimentos tristes que ficaram na minha memória foi do dia em que, ao lado de um amigo, percebemos que um animal perambulava entre as poltronas do cinema.
Meu amigo me olhou, surpreso, e limitou-se a me perguntar, tão assustado quanto eu: “É um gato ou um rato?”
Obviamente, com a sala escura, pois o filme já havia começado, não podíamos ter certeza, mas já sabíamos que o Cine Brasília, abandonado pelos administradores irresponsáveis que naquele tempo já não tinham respeito pela cultura, estava infestado por ratazanas.
O Cine Brasília, um verdadeiro monumento à cultura erguido na capital, estava se deteriorando assustadoramente.
Os trabalhadores começaram a ser abandonados à própria sorte e começaram a prever a demissão.
Foi quando tiveram que apelar pelo único recurso que conseguiram para continuar sobrevivendo até a derrocada final.
Nem sequer passávamos pela bilheteria. Foi quando começamos, por um breve período, a frequentar cinema sem pagar ingresso no Cine Brasília.
O montante com o qual pagaríamos o ingresso era, furtivamente, entregue nas mãos dos poucos funcionários restantes, que se postavam à entrada do acesso ao pátio que dava para a sala de exibições.
Nunca me arrependi de dar o dinheiro diretamente a eles.
Eu sabia que era um gesto de defesa que, diante da demissão próxima, eles resolveram adotar para continuarem sobrevivendo em busca de um novo emprego.
Os tempos estão mudando, pelo que leio no noticiário.
E aquele palco nobre onde se apresentou Elis Regina começa a ser revigorado.
Esperamos que alcance o destaque que sempre mereceu, e que jamais deveria lhe ter sido tirado.
As imagens têm licença creative commons e são do tempo do início da construção de Brasília, em cenários anteriores, portanto, à nossa chegada à capital. Pedimos desculpas pela baixa resolução, em decorrência, exatamente, de serem fotos muito antigas, de época em que havia poucos recursos fotográficos. A foto em destaque é de uma das bandas onde eu tocava bateria.
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1 Comentário
Cheguei a Brasília em 1970 e frequentei muito o cine Brasília pois vim morar com minha irmã que morava na 107 Sul.
SIM era infestado de ratos, assistia com as pernas em cima da poltrona morrendo de medo. Kkkk
Tinha tb muito festival de cinema. Boas lembranças.